quinta-feira, 30 de maio de 2013

As mil faces da alma

   Foi numa noite como qualquer outra que eu a vi. Estava se apresentando. Se você quer saber, ela não tinha nada de especial. Nada, além do beijo. Diziam que, mesmo quem não fosse cristão, ao tocar naqueles lábios via o céu. E não era qualquer céu. Era o melhor deles. O paraíso dos sonhos. Mas, um beijo daqueles não era pra qualquer um. Homens e mulheres vinham de longe, para encontra-la.
   A noite seguia tranquila conforme ela se apresentava. O palco era pequeno, sujo e úmido. Todo o local fedia a mofo. E eu não conseguia me controlar. Minha mão estava tremendo, impiedosamente. E eu queria vomitar. Naquele momento, todas as náuseas da vida, voltavam como um cachorro sem dono, à procura de um lar. Mas, eu não conseguia chorar. Fiz uma prece silenciosa para que meu corpo não me deixasse, naquela noite. Contudo, não consegui.
   Quando acordei, estava em uma poça de sangue, num banheiro desconhecido. E, ali, ela estava, "dormindo". Sua alma já não habitava mais nesse mundo. E eu desconhecia as verdadeiras razões. O que teria acontecido? A noite anterior ecoava em minha mente em uma música cantada por ela mesma. "O que eu quero é sossego!"
   Então, me levantei e saí. Era o mesmo banheiro daquela boate asquerosa da noite anterior. Minhas roupas pingavam sangue. E meu rosto, sujo, também. Eu estava com nojo de mim mesmo. Fui para casa e troquei minhas roupas. Pus fogo nas sujas. Ninguém poderia me acusar de nada. Eu queria que ninguém pudesse me incriminar. Mas, acho que isso não seria possível.
   A escuridão me tocou, assim que possível. Quando nasci, a luz irradiava o ambiente, como uma a primavera dá vida. Mas, eu preferi as trevas. Me agarrei a elas, assim que possível. Tremeluziu-se o ambiente, então, à minha percepção, e eu não estava mais lá. Conforme me parecia, eu já não era mais eu. Não controlava minhas ações. Era apenas um telespectador. A noite me surgia, tão natural quanto possível, e eu ganhava controle sobre meu próprio corpo. Bem assim, o outro tomava meu lugar sem perceber.
   Aquele animal estava me perturbando. Não sei como, nem o porquê, só sei que estava com medo. Meu corpo tremia, enquanto eu não estava em controle de mim mesmo. Ele estava. E, assim, quando consegui me libertar, já era tarde e o animal me encarava. Toquei seu corpo delicado e apertei o mais forte que pude. Senti sua vida se esvair com cada suspiro. Então, um sorriso se instalava em meus lábios. Eu estava feliz.
   O outro não apareceu até a manhã do outro dia, quando estávamos deitados. Ele não suspeitava de nada. Estávamos cansados e queríamos dormir. Mas, ele achava que fora apenas mais uma noite ruim, dentre tantas outras, e deixou pra lá. Pôs-se a ir à escola, perder seu próprio tempo. Então, a professora se perguntava o que estaria acontecendo. E ele sabia. Sabia, mas não sabia que sabia. Uma dúvida se instaurava em si mesmo.
   Eu me lembrei de quando era criança. Que coisa horrível havia sido feita àquele pobre animal. Eu mesmo fui acusado, como todos os meus colegas de classe. Todavia, a investigação não deu em nada além de uma morte acidental ou de velhice. "Morte morrida ou Morte matada?", sempre é a primeira indagação acerca de uma morte. Nem sempre nos satisfazemos com ela e tão logo queremos outros complementos.
   Então, minha porta começou a soar. Não como um sino. É que alguém estava batendo nela. E quem aparece é justo ela. Bati-lhe na cabeça, instantaneamente, como reflexo. E ela o fez. Ambos caímos, simultaneamente. Acordei antes dela e a prendi. Amordacei-a. Segui para a cozinha e fiz meu café da manhã.
   Quando ela acordou, eu já estava comendo. Tentou gritar, mas não conseguiu. Então, passou a me olhar fixamente nos olhos. Um vento frio passou pela sala, levando os jornais que estavam em cima da mesa. Me levantei e fui busca-los. Quando voltei, ela já não me olhava mais. Seus olhos eram duas órbitas vazias. E sua pele escura brilhava à luz do meio-dia. E um jornal estava a seus pés, com a manchete: "Cantora desaparecida".
   Lentamente, retirei sua mordaça. "O que você pensa que está fazendo, seu imprestável?", ela me perguntou com ares arrogantes. Eu não sabia, sinceramente. Quem era ela? O que ela era? "Me solte logo", ela exigiu, tão logo percebeu que eu já estava fora de mim. Estava, ao longe, sonhando com uma brisa outonal. E pensei, assim, que a primavera, quando viesse, traria vida nova, e seria muito melhor. "O que está acontecendo, Cícero?", ela perguntou, se dirigindo a mim.
   Eu olhei fixamente em seus olhos e não descobri nada. Normalmente, acontecia isso. As pessoas vinham até mim alegando que me conheciam, mas os rumores acabavam se provando sem fundamento. Minha vida sempre foi assim, das mais simples. Vivi no interior, na área rural, até os 21 anos, quando decidi me mudar pra Capital. Do estado, quero dizer. A cidade me fascinava, com todas as cores e diversidades.
   "E o plano, Cícero? Como fica?", ela me perguntou, mais uma vez. Eu não sabia responder. Como ela sabia meu nome? O lugar irradiava dúvidas. E ela, também. Eu me perguntava o que havia de errado com ela. E, acima de tudo, o que havia de errado comigo. Minha memória já não era das melhores, e eu não era o único que percebia isso. "Quem é você? Não é o Cícero, é?", ela me perguntou, conseguindo arrancar um breve suspiro meu: "Não".
   "Meu nome é, sim, Cícero, mas não me lembro de você. Quem é você? O que quer comigo? Quem é Cícero? O que você quer com ele? Se parece comigo? O que posso fazer para ajuda-la? Calma, femme fatale. Eu já tiro você dessas cordas, assim que você me responder. Não sei como você foi parar aí, exatamente. Não me lembro."
   "Seu nome é Cícero dos Santos Cristóvão?", ela me perguntou. Eu assenti, com um leve agitar de cabeça. E meu corpo estremeceu-se. Caí, em lágrimas, ali.
   "Sim, sou eu, Berenice.", eu lhe disse, conforme me levantava. A soltei e dei um abraço. Nos beijamos por algum tempo. "Você precisa ir", eu lhe disse. Ela disse que não iria. "Não arredo o pé daqui enquanto não souber o que está acontecendo, Cícero." E eu fiquei impotente, conforme minhas mãos, mais uma vez, tremiam.
   Me desvencilhei do seu abraço. "Vamos sair daqui", eu lhe disse. Ela não respondeu. "Berenice, vamos sair?", lhe perguntei, mais uma vez. E ela não respondeu. "Berenice, meu amor, vamos embora?", perguntei, conforme as palavras morriam na garganta. "O que está acontecendo?", ela me perguntou. "Seu cheiro não é mais o mesmo, é?", ela perguntou, praticamente afirmando. Eu não sabia o que estava acontecendo. "O que foi, meu amor?", eu lhe perguntei, mais uma vez.
   Então, era eu novamente. "O que está acontecendo, Berenice?", eu perguntei, olhando para seus olhos, doces e suaves. "Nem mesmo ele sabe, não é?", ela gritou, olhando-me nos olhos. Então, uma dor tomou meu peito. E eu não lembro mais de nada.
   "O que ele precisa saber, mesmo?", perguntei-lhe. Ele é feliz assim. E você também o era, não? Como descobriu? Foi o cheiro, como você mesma disse? Somos tão diferentes assim? Nossas almas são irmãs gêmeas. Uma surgiu com a outra, indiferentemente de tudo o mais. Mas, você só conhece nós dois, não é?
   "Sim", ela deixou escapar, antes de um desmaio. Apodrecendo o ambiente, sua presença se estendeu sobre o tapete, escurecendo-o de um tom escuro. A sala estava fria. E Cícero clamava seu trono de volta. Mas, eu não estava pronto para devolvê-lo. O que seria de mim? Ela acordou. Eu estava sentado ao seu lado. Ela se levantou e tocou minha face.
   Lágrimas? O que são? De onde vêm? Para onde vão? De quê se alimentam? Tantas perguntas se amontoavam em minha razão. Tratei essas lágrimas como animais irracionais. Não, elas não são isso. São apenas manifestação corpórea de algum sentimento. Seu sorriso se abriu, em minha face. Não era mais eu. Quem era?
   "Ainda não acredito que é você, Cícero. Está de volta? E o plano?", ela perguntou em alto e bom tom. Ele vai responder, não é? E quando ele disser que não sabe do que ela está falando, ela vai explicar. E quando o fizer, meus planos irão por água abaixo. Obrigado, Berenice. Sua inteligência de baixo nível me custou uma boa fortuna.
   "Na verdade, foi apenas uma pequena mudança de planos", ele disse. E eu não estava entendendo, até então, o que estava acontecendo. "Foi apenas um pequeno desleixe", ele disse, enchendo meus olhos de lágrimas. Pelo menos, é o que estaria acontecendo, se eu possuísse algum corpo físico. Mas, aí, eu me perguntei quem era ele?
   "Querido, agora só precisamos simular minha morte, certo?", ela perguntou. E ele fez que não, com a cabeça. "Tudo já foi encaminhado", ele lhe disse, conforme a beijava e arrancava todas as suas roupas. E, no final, ele bateu o martelo, literalmente. Esmagou seu cérebro sem mais nem menos.
   E quando voltei a mim, ela estava lá, em minha cama, ensanguentada novamente. O que eu fiz? Será que fui eu mesmo? A trama se engrossou. Eu não sei o que dizer. Minha boca já não responde aos ruídos mais íntimos ou silenciosos da noite. Sussurros morrem na calada do dia que poderia ter sido o melhor da minha vida. O que aconteceu, mesmo?
   Eu não posso dizer que nunca fiz isso. Mas, nunca com um ser humano. Animais possuem vísceras. E seres humanos, também. Mas, o que os diferencia? Homens são animais. Mas, por algum motivo, não os classificamos como tal. O que faz diferentes todos aqueles animais de um simples ser humano?
   Cortei seu corpo em diversas partes e fiz questão de colocar em diversos panos e sacos. Então, joguei no lixo, como a carne podre que era. Ninguém jamais iria suspeitar. E o Seguro de Vida? Estipulava um desaparecimento de apenas três meses. E todo o dinheiro, viria para seu marido, Cícero dos Santos Cristóvão. Eu não era ele. Mas, sabia quem era. E aproveitaria cada momento como se fosse.
   E quando recebi todo aquele dinheiro, eu já não sabia mais quem era. Todos aqueles blecautes começaram a voltar. E meu corpo já não suportava tudo aquilo. E, vivendo diversos dias de febre absurda, decidi me matar. Minha realidade não me pertencia. Desde sempre, meu corpo já não era mais meu. Deitava-me à luz da Lua e acordava ao Sol raiar, muito embora nada me descansasse.
   Uma bala me atravessou o crânio e retirou deste mundo cada pingo da minha humanidade. E para cada gota de sangue perdido, dediquei uma prece silenciosa, a tudo que havia de mal no mundo. E, indo embora daqui ao longe, decidi entoar uma canção. E, nela, vi meu próprio reflexo, daquilo que nunca fui, conscientemente.

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