sexta-feira, 31 de maio de 2013

Os primos

Lavo meu rosto, pela manhã, todos os dias, antes de sair para fazer minhas refeições. Hoje, foi um dia diferente de todos os outros. Olhei-me naquele espelho e concluí o que temia mais. Estou envelhecendo. O tempo passa para todos, inclusive para mim. Que saudade da infância, que já não volta mais, quando eu brincava com todos os meus irmãos e irmãs. Estão mortos, sim. Não sei como aconteceu. Só foi. De repente, assim. Um passe de mágica. Apanhei meus óculos e pus no bolso. Não precisava deles para nada a não ser aquilo que me estava perto. Sim, o último sinal da idade, não é mesmo? Então, coloquei meu casaco e saí. O dia estava frio, como se fosse inverno, mas era só o outono que batia à nossa porta. Eu e meu marido vivemos sozinhos, sem crianças. Sempre pensamos em adotar, mas ela seria vista com maus olhos e decidimos que lá nunca seria um bom lugar, pelo menos não em nossa época, para criar uma criança. Veja bem, é que não somos casados. É ilegal que dois homens o façam. Mas, vivemos juntos, sim. O nosso pretexto é que somos primos. Mas, tenho certeza que muitos percebem que somos amigáveis demais. Dois homens adultos, um loiro e outro moreno, habitando o mesmo teto, e andando de mãos dadas. Ou são homossexuais ou, simplesmente, pecadores incestuosos.

Casei-me uma vez, há algum tempo. Era uma moça bonita, do Norte. Era galesa por sangue materno, e inglesa, pelo sangue do pai. Uma moça robusta de caráter forte. Procurei nela aquilo que nunca havia possuído: amor. Não sei de qual tipo. Ela me ofereceu todos. Desde o materno, até o singelo amor físico. Agarrei-me ao primeiro como um náufrago. E, ao segundo, infelizmente, tratei com desdém, fazendo-a enlouquecer e, finalmente, se matar, pelo pretexto da obrigação familiar. Dizia-me sempre que seu sonho era ser freira, mas sua família a havia prometido para um jovem infante que morreu. Então, ela foi dada a mim, como um presente, para que eu amasse, cuidasse e desse muitos filhos para que ela pudesse cuidar e distrair-se dos pecados ca carne. Acontece do mesmo jeito com meu esposo. Ele também fora prometido, ao nascer. Felizmente, como um bom mestre da trapaça, fingiu sua própria morte, no mundo novo, e retornou para a terra de seus ancestrais, onde nos conhecemos.

Foi numa viela, comprando coelhos que o vi. Estava esplêndido, usando um terno fabuloso. E, quando percebeu que eu o olhava, chamou-me para tomar uma cerveja no próximo bar. Eu ainda era casado, na época. E ele havia acabado de chegar. O sotaque ainda era forte, nele. E seu jeito bronco logo me atraiu a chama-lo para jantar. Rapidamente, fez amizade com minha esposa, discutindo sobre política, teologia e gastronomia, as três artes que era dotado de maiores conhecimentos. Acerca da primeira, lhe falou acerca da ascensão do Partido Nazista, o que cativou uma grande discussão sobre como minha esposa possuía um grande amor pela pátria onde morávamos, sendo melhor que toda a Inglaterra, com seu sistema encorporado à burguesia, que fedia e era tão mal arrumada quanto meus sapatos. Então, conversaram sobre Deus. Disseram-me que a felicidade poderia ser alcançada apenas por aqueles que iam a igreja todos os domingos e sentiam Deus no coração, expulsando todos os males mundanos. Falaram-me que nada do que experimentamos aqui é real e que o Mundo, de verdade, habitava junto à Divindade. Quando começaram a discutir alguma receita, eu já estava deveras cansado e decidi ir à cama. Me despedi de ambos e pensei que seria melhor que no outro dia, pelo menos alguma daquelas receitas estivesse em meu prato. Quando acordei, no dia seguinte, lá estavam eles. Sentados e conversando, como se tivessem passado a madrugada assim. E eu aprovei tal união. Minha esposa e aquele que viria ser meu melhor amigo. Ah, naquele momento, verdadeiramente, eu fui feliz.

Minha felicidade se multiplicou intensamente quando minha então esposa descobriu que estava grávida. Meu peito se inflamou e chorou rios de magma. Fiquei de febre por três dias, quando descobrimos que ela havia perdido o bebê. Como assim? Deus não queria que tivéssemos esse filho? Me confessou, naquele cômodo, que o bebê não era meu. Disse-me que, talvez, foi a mentira que tivesse matado nosso filho. Digo, dela. Me confessou que o filho era do meu amigo. Meu melhor amigo. Minha reação na hora foi espanto. E o que havia acontecido, então? Minha esposa e meu amigo estavam mantendo relações à minha espreita? Ela disse que sim, quando perguntei. E quando indaguei o motivo, ela só disse que "aconteceu". As palavras daquele momento ecoaram em minha mente por vários dias. Então, eu me mudei. Não de casa, claro. Mas, para um outro quarto vizinho. Jamais saberiam que estávamos separados. Eu e ela, ela e eu. Um casal desfeito. Ela começou a rever meu amigo. E ele? Já não era mais tão próximo de mim. Não nos falávamos. Nós três éramos como fantasmas um para o outro. Ela não me ousava olhar nos olhos, de tanta vergonha. E ele apenas obedecia, silenciosamente, aquilo que eu havia lhe imposto.

Até que chegou o dia que eu já esperava por eras. Ela se matou. Foi-se com uma garrafa de veneno. Alertou-me várias vezes que o faria, mas eu não quis ouvir. Achei que era falatório demasiado dela. E, quando aconteceu, nenhum remorso tomou conta do meu ser. Acreditei que era mais uma de suas dramatizações extremas, mas quando descobri que não era, meu mundo caiu. No dia seguinte, ele apareceu à porta. E quando a fechou atrás de si, revelou os sentimentos que nutria por mim. A verdade é que ele jamais havia se apaixonado por ela. Ele procurava apenas a atenção de um outro, que era eu. Seu verdadeiro amante. Nos despimos à luz da Lua, que brilhava intensamente. E nos tocamos em cada pedaço do corpo e da alma. E foi bom. Pela manhã, decidimos fazer um plano. Ir para algum lugar e ser irreconhecíveis. Uma vida nova, longe daquilo que nos prendeu por tanto tempo. E viemos morar ali, em Varsóvia, onde poderíamos passar livres pelas autoridades, que fiscalizavam judeus, e apenas eles, apenas por serem o que são. E, infelizmente, acho que estava errado. Eles não se importavam com o faro de você ser judeu, ou não. Eles apenas queriam saber se você era diferente. E se fosse, adeus. Você não merecia ter seu lugar nesta Terra, que foi feita apenas para a "espécie" dele. Que Deus seria este que permitia a morte de jovens inocentes, por um ideal? Eu não sei. Não choro mais por isso. Felizmente, eu não estarei só. Nunca mais. Contigo, sempre estarei.

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